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domingo, 29 de setembro de 2013

Economia de Comunhão: cultura da partilha

 
Qual tipo de pessoa e de sociedade
para a Economia de Comunhão?
                             de Vera Araújo
O Desenvolvimento humano
A cultura da partilha 

A cultura do ter
Os fundamentos da comunhão
A comunhão como categoria sociológica
... como fonte de uma sociedade nova... como categoria econômica
Nesta última década que precede o Terceiro Milênio, emergiu muito o tema do "desenvolvimento" no âmbito do crescimento da economia mundial e da globalização. Uma série de cúpulas internacionais assinalou e ressaltou este interesse e esta preocupação generalizada: 'Ambiente e desenvolvimento', no Rio de Janeiro, 'População e desenvolvimento', no Cairo, 'Mulheres e desenvolvimento' em Pequim, 'Desenvolvimento social' em Copenhaghen. De todas estas cúpulas emergiu uma convicção geral: o desenvolvimento está no centro da vida econômica, é a finalidade do agir econômico, é o objetivo da atividade econômica.
O desenvolvimento humano
Quase paralelamente, no âmbito da reflexão sobre a teoria econômica, economistas de valor indiscutível - como o prêmio Nobel 1998, o indiano Amartya Sen - nos Estados Unidos, colocaram em destaque um novo conceito de desenvolvimento: o desenvolvimento humano. Este supera a idéia de desenvolvimento identificado unicamente com o crescimento econômico e concentra-se sobre as pessoas, suas necessidades, e sobre alguns parâmetros fundamentais que dizem respeito às condições de vida: a saúde, a longevidade, o grau de instrução, a participação na vida social.
É o desenvolvimento humano que deve ser o fim e o objetivo central de todas as medidas de política econômica, e que vai abrindo caminho na linguagem dos relatórios oficiais, e em outros âmbitos, como capacidade de atuar três possibilidades essenciais: uma vida longa e sadia, a instrução, e o acesso às reservas necessárias para alcançar e manter um nível digno de vida.
Estas novas orientações teóricas e práticas oferecidas à atividade econômica chocam-se, infelizmente, com as medidas de política econômica adotadas pelas grandes agências e instituições econômicas mundiais nas relações com os vários países. Nelas encontra-se uma práxis econômica e uma forma de compreender os seus fins e objetivos que caminham numa direção totalmente oposta, enquanto privilegiam a afirmação radical do eu agente e impulsionam para uma política consumista irracional, desastrosa, seja para as comunidades humanas, seja para o ambiente e o ecosistema.
Estas considerações e reflexões convencem-nos que, para enfrentar o problema de forma eficaz, seria necessário ir mais a fundo no diagnóstico e na terapia. Trata-se de compreender como o próprio conceito de desenvolvimento humano nasça de uma nova concepção antropológica, do surgimento de um homem novo, capaz de acrescentar algo a mais às suas dimensões modernas de produtor e de consumidor, que o ajude e impulsione a abrir-se à alteridade e o liberte do fechamento e do egoísmo.
É necessário um tipo de homem que podemos chamar de 'Homo donator', que seja capaz de exercer o dom e a partilha nas atividades públicas e, particularmente, nas atividades econômicas. Somente assim pode-se delinear uma cultura nova, que exprima uma visão do homem e da sociedade capaz de responder às expectativas, aos desejos, às buscas, às necessidades que o momento histórico impõe.
Podemos chamá-la de cultura da partilha. Não se trata de ser generosos, de fazer beneficência ou filantropia, nem muito menos de abraçar a causa do assistencialismo. Trata-se, pelo contrário, de conhecer e viver as dimensões do doar-se e do dom como essencial à substância e à existência da pessoa.
A cultura da partilha
A cultura da partilha engloba uma concepção própria da pessoa vista na sua essência (o homem nas suas relações, como centro e fim de toda realidade e atividade) e numa série de comportamentos que caracterizam as relações humanas.
A cultura do partilha: o homem como um ser aberto à comunhão, ao relacionamento com o Absoluto-Deus, com os outros, com a criação. Individualidade e socialidade encontram-se no dom de si, do próprio ser, e na circulação dos bens espirituais materiais e necessários ao desenvolvimento, ao crescimento e ao amadurecimento de todos.
Não é qualquer tipo de doação, porém, que leva à cultura da partilha.
Existe um "dar" que está poluído pelo desejo de poder. É um ato cheio de desejo de domínio, quando não de opressão propriamente dita, sobre os indivíduos e os povos. É um "dar" somente aparente.
Existe um outro "dar" que busca satisfação e aprovação no próprio ato de dar. É um dar vaidoso, cheio de amor próprio, expressão de egoísmo e culto da própria personalidade. Quem recebe nestas condições sente o ato de dar como uma humilhação, uma ofensa.
Existe, ainda, um "dar" utilitarístico, interessado, que procura a própria compensação, os próprios proveitos. É como o dar existente no sistema econômico vigente e na estrutura de pensamento que o fundamenta. Não é um dar que cria uma nova cultura .
Existe, enfim, um "dar" que os cristãos chamam evangélico e que desencadeia uma grande gama de valores que definem o próprio ato de dar: gratuidade, alegria, grandeza, abundância, desinteresse, e que o liberta do risco de ser mal entendido ou instrumentalizado.
A cultura da partilha concretiza-se justamente numa verdadeira arte do dar, na qual as relações humanas, vividas num contínuo doar-se, estão direcionadas à comunhão, sinônimo de unidade; na qual o ato de doar, de partilhar bens espirituais e materiais, leva à comunhão. Estas relações tendem a ser mútuas e recíprocas. Como conseqüência nasce a comunhão, a unidade. A sociedade que dela se origina estrutura-se como comunhão, porque a comunhão é a própria essência da sociedade e da pessoa.
A cultura do ter
É óbvio que esse tipo de sociedade está em forte contraste com a sociedade atual. As mudanças ocorridas com a modernidade abriram caminho para o individualismo, o egoísmo, a busca excessiva do próprio interesse. Esta dimensão do homem, vivida e almejada em todas as expressões da convivência social, teve como fruto a cultura do ter, que hoje domina o nosso modo de viver.
Não temos a intenção de rejeitar ou desprezar a dimensão do ter, mas, como diz João Paulo II, "o 'ter' objetos e bens em si, não aperfeiçoa o ser humano, se não contribui ao amadurecimento e enriquecimento do seu "ser", isto é, à realização da vocação humana enquanto tal". E ainda: "O mal não consiste no 'ter' enquanto tal, mas em possuir de modo desrespeitoso à qualidade e à ordenada hierarquia dos bens que se possui. Qualidade e hierarquia que nascem da subordinação dos bens e da sua disponibilidade ao "ser" do homem e à sua verdadeira vocação" (Sollicitudo Rei Socialis n. 28).
O homem individualista criou a sociedade consumista, que faz de toda a existência, mercadoria.
E eis, então, a sociedade moderna: complexa, conflitual, alienada, esbanjadora, galharda e triste ao mesmo tempo, e sobretudo desiludida, incapaz como é de criar relacionamentos profundos, de tecer relações duradouras no tempo, estando cada um fechado na própria solidão. As conseqüências são conhecidas.
Do ponto de vista antropológico domina o "homo consumens", protagonista da cultura do ter, ávido de consumir, incapaz de consciência objetiva e moral.
Do ponto de vista político e social, espalha-se uma competitividade agressiva, que acaba por alimentar conflitos e guerras de todos os tipos, entre povos e Estados até as que se instauram no mercado e no mundo do trabalho.
Mas, voltemos à comunhão.
Os fundamentos da comunhão
A comunhão é uma categoria polivalente, antes de tudo religiosa e espiritual, porque a sua fonte é Deus - Trindade, comunhão de amor entre Pessoas, e Cristo que é a revelação deste mistério.
Chiara Lubich, inspiradora de um Movimento e de uma espiritualidade da unidade, escreve:
"Senti que eu fui criada como Dom para quem está perto de mim, e quem está perto de mim foi criado por Deus como um Dom para mim. Como o Pai, na Trindade é tudo para o Filho e o Filho é tudo para o Pai".A comunhão trinitária é vista, portanto, como fundamento ontológico de qualquer forma de comunhão, como substância e como vida.
A comunhão como categoria sociológica
Mas a comunhão é também uma categoria sociológica, "manifestação da sociabilidade real" nas palavras de George Gurvitch, sociólogo russo. Ele analisa a categoria "comunhão" em ordem aos graus de intensidade da sociabilidade por fusão parcial do 'Nós'.
"A imanência recíproca entre o Eu, os Outros e o Nós, encontra na 'comunhão' o seu ápice".
E ainda, "os participantes de uma Comunhão sentem-se aliviados por um sopro libertador que elimina todos os obstáculos, libertando-os de si mesmos, como de todos os outros laços sociais que lhes poderiam ser de impecilho".
O conceito de comunhão como é entendido por Gurvitch, não é o conceito cristão que está na base da Economia de Comunhão; e os relacionamentos entre o Eu e os Outros como ele os entende, não expressam a comunhão no sentido trinitário. De qualquer forma, a sua concepção é interessante e estimulante, e com ela podemos nos confrontar.
... como fonte de uma sociedade nova
Uma sociedade de comunhão, inspirada e modelada segundo a Trindade de Deus não é somente uma aspiração, e muito menos uma abstração. É o imperativo de uma renovada descoberta da Trindade como princípio e fonte de uma sociedade nova. Como princípio, significa assumir a comunhão, que é unidade, como paradigma para a criação de novos esquemas de leitura, de compreensão e de interpretação da realidade social - para a enucleação de uma teoria capaz de colher os novos relacionamentos e relações que acontecem na sociedade.
Como fonte de uma sociedade nova, significa usar tal paradigma para uma nova orientação da história na sua complexidade, como dimensão que caracteriza as relações interpessoais, sociais, sistêmicas, estruturais e institucionais. Unidade, portanto, para compor as diversidades, qualquer tipo de diversidade; para solidificar opluralismo, reconhecido como um bem e uma riqueza; para incrementar a participação como motor da vida social; para fortalecer a liberdade como expressão de uma humanidade madura; para irrigar a práxis social em todo lugar e em cada nível ou dimensão: dos direitos humanos à ecologia, da justiça à saúde, da arte aos meios de comunicação, da cultura ao respeito pelo meio ambiente, e assim por diante.
... Como categoria econômica
Com a Economia de Comunhão, a comunhão pode elevar-se a categoria econômica.
São as próprias empresas, nas suas estruturas e organizações internas, e os agentes econômicos, que atuam nelas internamente ou que gravitam ao seu redor, que são chamados e convidados a criar comunhão.
Desta forma, a comunhão não é somente possível e passível de ser atuada nas relações interpessoais e sociais, mas, eu ousaria dizer, que ela entra prepotentemente como um direito no âmbito econômico, nas suas estruturas.
Não se trata de uma utopia, de um sonho idílico mas irrealizável. Parte-se da constatação da necessidade improrrogável de uma profunda mudança da economia, como dimensão importante da expressão própria do ser humano. A busca de uma sociedade sempre mais "civil", participativa, harmoniosa, em uma palavra: capaz de criar as condições para a felicidade e o bem-estar dos indivíduos, das comunidades e dos povos, exige que se supere esta economia conflitual, sem limites de competitividade, agressiva, alienante... Crescem as vozes que pedem mais solidariedade, mais integração e interação, mais diálogo, mais escuta dos diversos pontos de vida. E isto demonstra a atualidade da Economia de Comunhão como ponta avançada de uma economia alternativa àquela vigente hoje.
Concluindo, podemos dizer que a Economia de Comunhão, por um lado exige "homens novos", capazes de praticar a cultura da partilha, e uma sociedade nova que tenha como mentalidade, nos relacionamentos e relações, a solidariedade e a partilha. Por outro lado, enquanto Economia de Comunhão, estrutura econômica, empresa, ela mesma está em grau de espalhar "comunhão". Um notável salto de qualidade que pode funcionar como um impulso provocatório no futuro de uma sociedade melhor, mais humanizada e humanizante, que acolha e abra espaços para a convivência social de homens e mulheres revestidos de maior dignidade.
Extraído de Nuova Umanità XXI (1999/6) 126
 Para aprofundamento:


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